TRABALHO DOMÉSTICO NÃO É NOVELA DE “EMPREGUETE”.

A categoria dos “domésticos” é uma das mais numerosas do país. Com a aprovação da PEC dos empregados Domésticos (Emenda Constitucional n° 72) o legislador resolveu quitar uma dívida social não dirimida na Constituição Federal de 1988, equiparando-os, em direitos, aos demais trabalhadores urbanos.
A correção deste desvio constitucional trabalhista não merece ser entendida como mera demagogia legislativa ou simples estratégia eleitoral, mas, sobretudo, como reparação de caráter social, visto que a sua exclusão da plenitude de direitos consagrados na legislação do trabalho somente encontra explicação nos tortuosos caminhos de dominação econômica, política e cultural, trilhados, historicamente, pelo Brasil.
A Emenda não representa inovação visceral nos direitos básicos dos “domésticos”, na medida em que através de outras leis promulgadas após a Constituição eles já tinham adquirido, dentre outros, o direito ao: salário mínimo, 13º salário, repouso semanal remunerado, licença maternidade, e férias de 30 dias mais 1/3.
Agora, direitos como: FGTS obrigatório; indenização de 40% sobre o total dos depósitos na hipótese de dispensa imotivada por iniciativa do empregador; seguro desemprego, pagamento diferenciado e a maior para o trabalho noturno; e a tão comentada jornada de trabalho de 8 horas por dia, ou 44 horas por semana, com pagamento das horas extras com acréscimo de, no mínimo, 50% sobre o valor da hora normal, foram incorporados aos já existentes.
A partir de 2013 os empregados domésticos também passaram a ter garantia à proteção do salário, constituindo crime sua retenção dolosa; salário-família; redução dos riscos inerentes ao trabalho; creches e pré-escolas para filhos e dependentes até seis anos de idade; reconhecimento das normas coletivas de trabalho; seguro contra acidentes de trabalho; proibição de discriminação de salário, de função e de critério de admissão; proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezesseis anos; apenas para citar alguns direitos assegurados, de forma mais ampla, aos demais trabalhadores.
Com o fim da desigualdade, antes respaldada pela própria Lei, podemos dizer que os empregados domésticos alçaram, finalmente, condições mais dignas e conquistaram o direito a um trabalho decente.
Convém dizer que ao longo dos tempos criamos o hábito de cultivar um relacionamento com os “domésticos”, com características muito próximas ao período escravocrata no país. Quem já não ouviu a frase “trabalha aqui em casa faz tanto tempo que já é da família” ou “minha empregada veio para cá menina, lhe demos comida e moradia. Deveria estar agradecida porque a tiramos da miséria e pobreza em que viviam seus pais”? Quem não tomou conhecimento dos abusos, humilhações e de atos de violência, de toda a ordem, objeto de denúncia, nos últimos tempos, nas novelas de TV, chegando a virar enredo de uma delas, para alimentar sonhos de uma ascensão social antes tida como inalcançável.
De tal forma enraizamos o tratamento “serviçal” que tão logo foram noticiados os avanços trazidos pela Emenda 72, instalou-se um verdadeiro e desmedido pânico entre os empregadores de domésticos, com cabalísticas previsões de demissões em massa e inevitável redução dos respectivos postos de trabalho neste segmento.
Apesar do pânico, pensamos que é preciso dizer “sim” à Emenda Constitucional 72/13.
É preciso, também, preservar incólume o seu conteúdo, para evitar distorções por meio de projetos de regulamentação que a guisa de dar alento aos empregadores poderão desnaturar o propósito da inclusão destes trabalhadores no mesmo plano daqueles que são detentores de todos os direitos básicos tutelados na legislação trabalhista, ou servir como precedentes de flexibilização de normas vigentes, proporcionando uma nefasta precarização das condições já asseguradas a outros empregados.
Num país que tem avançado significativamente na ruptura das desigualdades sociais, com fortes estímulos à erradicação do trabalho escravo; que tem atuado como garantidor do respeito à cidadania e da afirmação dos direitos humanos; que sustenta na sua Constituição, como princípio social fundamental, o da dignidade e a valorização do trabalho, não há justificativa plausível ou razoável para se perpetrar condutas discriminatórias, seja qual for a sua natureza, inclusive, quanto ao tipo de trabalho.
O saudoso poeta Gonzaguinha, na clássica canção “Guerreiro Menino” alertava que: “Um homem que se humilha, se castram seus sonhos. Seu sonho é sua vida e a vida é trabalho. E sem o seu trabalho, o homem não tem honra e sem a sua honra se morre, se mata”.
Chega a ser inaceitável o argumento “terrorista” que os benefícios básicos trabalhistas conferidos ao trabalhador doméstico por leis específicas e, agora, pela Emenda 72, inserindo-o nas políticas públicas voltadas a humanização das relações de emprego e permitindo que goze de melhores condições de vida e trabalho, servem tão somente para a sua inevitável exclusão, de forma progressiva e definitiva, do mercado de trabalho.
Fato é que a Emenda 72 está obrigando a sociedade a se mover, de forma acelerada, no sentido de buscar alternativas que proporcionem a sua adaptação às novas regras. Contudo, enquanto o exercício desses direitos não se incorpora ao nosso cotidiano de vida, adequando costumes e hábitos, haverá, ainda, por algum tempo, acirrada discussão acerca da aplicação e do cumprimento da lei nos casos concretos.
A situação de certa forma é compreensível partindo do pressuposto que muitos empregadores de empregados domésticos são também trabalhadores que, por sua vez, passam pelos percalços de não haver efetivação plena de seus próprios direitos básicos, ancorando-se, como forma de solução de suas demandas domésticas, na contratação dos serviços desta mão de obra que sempre foi abundante e barata.
Sem nenhuma estatística oficial, mas partindo da experiência de uma advocacia exercida há muitos anos na Justiça do Trabalho, podemos dizer que a principal causa de ajuizamento de ações trabalhistas envolvendo domésticos, decorre da falta da anotação de vínculo empregatício na Carteira de Trabalho. Só que a formalização do vínculo de emprego não é e nunca foi um direito introduzido pela Constituição e muito menos pela Emenda 72. Por sua vez, a falta do registro do emprego na carteira de trabalho não é um problema restrito, exclusivamente, a categoria dos empregados domésticos.
Diferenças de salário pela aplicação do salário mínimo regional, a falta de pagamento de férias, 13º salário e direitos decorrentes da própria rescisão contratual também não são demandas que têm origem na ampliação de direitos introduzida pela edição da Emenda Constitucional, visto que já eram assegurados por leis anteriores.
Podemos arriscar prever que antigas e novas demandas envolvendo trabalhadores domésticos ainda serão resolvidas, na maioria dos casos, através da conciliação judicial, e que as características desta atividade e a forma de relacionamento entre patrões e empregados conduzirão à solução dos conflitos, preferencialmente, por acordo entre as partes. Estatisticamente falando, poucos casos de domésticos serão sentenciados em primeira instância e naqueles decididos uma parcela mínima será analisada e julgada pelos Tribunais Regionais ou pelo Tribunal Superior do Trabalho.
Os empregadores começam a se adequar às novas regras da lei. Os acordos continuarão a existir para resolver as demandas oriundas desta relação. Portanto, nada de absurdo, excepcional, inconveniente, ou estarrecedor.
No entanto, enquanto for semeado o clima de “aversão” às novidades da isonomia de direitos conferida na lei, ainda assistiremos a vários outros capítulos dessa novela da vida real, principalmente em razão das propostas de regulamentação postas em debate no Congresso Nacional, algumas exóticas, como obrigatoriedade de livro de ponto para um único empregado e outras inusitadas, como as que estão sendo formuladas no já badalado projeto de autoria do senador Romero Jucá.
Para quem curte as novelas, fórmulas, no mínimo, curiosas, de regulamentação que estão surgindo no cenário atual, fazem parte do script e do enredo. Não obstante, vamos torcer que, superando esse momento mais crítico de domínio das informações jurídicas trazidas com a Emenda 72, a própria sociedade, diante da imposição de alteração e de adaptação de suas rotinas domésticas e mais consciente de que o doméstico não é “empreguete”, mas um cidadão portador de direitos como qualquer outro trabalhador, qualificado profissionalmente, ou não, dará um bom desfecho a esta novela no seu capítulo final.
José Luis Campos Xavier e Rita Cortez

Advogados da Cortez e Xavier Advogados Associados – AJS Assessoria Jurídica Trabalhista e Sindical


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *