*Artigo publicado em 18 de março de 2021, no Estadão
No mês em que comemoramos o Dia Internacional da Mulher, em 14 de
março de 2021, completaram-se três anos sem que o assassinato de Marielle Franco e seu motorista tenha sido totalmente elucidado.
A morte e o fato de não ter sido até agora identificado o mandante do crime foram lembrados no Brasil, Itália, Suíça, entre outros países, assim como as cenas de vandalismo praticadas, na ocasião, pelos então candidatos a
deputado estadual Rodrigo Amorim e a deputado federal Daniel da Silveira, este último recentemente preso por seus ataques contra membros do STF.
O violento episódio está registrado em uma placa afixada num poste em
frente à Câmara dos Vereadores, com os seguintes dizeres: “Vereadora Marielle Franco – mulher negra, favelada, LGBT e defensora dos direitos humanos – brutalmente assassinada em 14 de março de 2018, por lutar por uma sociedade mais justa”.
Obteve-se do poder público, ao menos, a renovação da homenagem, até porque o tempo, a falta de solução e o arrefecimento das manifestações em tributo ao corajoso trabalho legislativo e comunitário daquela incansável ativista dos direitos humanos, quando não apagam, podem enfraquecer a nossa memória.
O crime político praticado contra uma mulher negra no exercício do mandato de vereadora representa, na realidade, um questionamento à República e à democracia brasileira.
Episódios de extrema violência e estímulos a atitudes de ódio e agressão, sem que haja reação ou indignação por parte da sociedade, podem ser compreendidos como ataques à democracia.
A pesquisadora Margareth Dalcolmo, em recente artigo publicado sobre a
Covid-19, além do usual destaque ao desgoverno e à incompetência das
autoridades sanitárias no combate à pandemia, nos conduz a refletir sobre as festas, as aglomerações e o descarte das máscaras de proteção como atitudes de apatia ou insensibilidade da população, que provocam não só o significativo aumento do número de mortos e infectados, mas resultam num novo período de necessário isolamento social.
Diante deste quadro, a conceituada cientista, ao indagar onde está o “homem cordial” concebido por Sérgio Buarque de Holanda, conclui que certamente não iremos encontrá-lo hoje no Brasil, na medida em que “a violência, ostensiva ou sutil, encontra-se profundamente arraigada nas relações familiares, sociais e de trabalho”.
Ainda sobre violência, indiferença e pandemia, vale lembrar o discurso do “E daí?”, adotado pelo presidente da República, em abril de 2020, diante do notável crescimento do número de mortos.
Tamanha insensibilidade inspirou o professor de Direito Constitucional
Conrado Hübner Mendes a escrever um artigo intitulado “O presidente
comete crimes. E daí?”. Em profética análise, o professor criticou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por seguir “o tempo judicial no modo aleatório”,
acabando “por permitir a banalização do crime de responsabilidade e, na pandemia, do crime comum também”.
Por sinal, o discurso não é novo, basta lembrarmos de um prefeito de um município do Estado do Rio de Janeiro que, em 2008, para justificar os graves erros de gestão e controle administrativo da prefeitura, ficou famoso por dizer: “É ilegal! E daí?”.
Na filosofia de Hannah Arendt sobre “a banalidade do mal”, Margareth
Dalcolmo em seu artigo quis se referir, portanto, à indiferença das pessoas, seja pela banalização da violência decorrente das desigualdades sociais agravadas pela pandemia, seja pelo desprezo aos limites éticos e legais para a preservação dos valores civilizatórios mínimos.
A base da reflexão política e filosófica relativamente à banalidade do mal, e que pode ser aplicada para o discurso do “e daí?”, é a experiência totalitária, que evidentemente se opõe aos valores democráticos.
O estado democrático de direito foi claramente a opção feita pelo Brasil em 1988 e se destina a “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade a segurança o bem estar o desenvolvimento a igualdade e a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” (artigo 1o da CF).
A democracia é uma questão civilizatória. Isto significa respeitar os direitos humanos fundamentais. Não podemos aceitar passivamente, sem qualquer reação ou indignação, a desordem política que nos é administrada em doses homeopáticas de agressão.
Na opinião do procurador de Justiça Roberto Livianu, quando o País externa reação, existe a demonstração de que os brasileiros não estão inertes: “O Estado precisa ser gerido por pessoas que governem para o bem comum, e essa revolta deve se transformar num sentimento que oriente as nossas escolhas de representação”.
Não creio que reagir contra comportamentos e atos de violência e opressão coloquem em risco a democracia. No caso da democracia brasileira, os riscos são concretos, servindo de exemplos os ataques às instituições democráticas, o desemprego, as desigualdades de gênero, raça, etc.
A advocacia, portanto, deve se manter firme na defesa do regime democrático, pois não há exercício livre da advocacia sem democracia.
*Rita Cortez é presidente nacional do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), advogada e sócia do escritório AJS Cortez Advogados Associados
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